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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Anunciantes mostraram que não querem seus dólares subsidiando insultos, intimidação e estereótipos. Também não querem sua verba de marketing financiando discursos de ódio.
Essa é a visão de Jonathan Greenblatt, presidente da Liga Anti-Difamação (ADL, na sigla em inglês), centenária organização judaica e uma das principais entidades de combate ao preconceito nos EUA.
Foi a ADL que idealizou a iniciativa “Stop Hate for Profit” (parem o ódio com fins lucrativos), que convoca empresas a pararem de anunciar no Facebook por um mês, em protesto à inação da plataforma em relação a discurso de ódio. Mais de 1.200 empresas aderiram, entre as quais Disney, Coca-Cola e Unilever.
“Todas essas empresas não querem que seu dinheiro financie conteúdo que demoniza e difama pessoas por causa da origem delas, da maneira como rezam ou devido às pessoas que amam”, diz Greenblatt.
Ele afirma que a ADL planeja diversas outras ações nos próximos meses. Ainda assim, afirma acreditar que apenas a mobilização da sociedade civil e a pressão econômica dos anunciantes não são suficientes para fazer empresas como o Facebook mudarem de comportamento.
“O governo poderia tanto adotar medidas antitruste quanto rever a seção 230 [legislação que exime plataformas de responsabilidade por postagens de terceiros]”.
Greenblatt participa de uma live nesta terça-feira (18) sobre o “Stop Hate for Profit”, promovida pelo Instituto Brasil-Israel, a Confederação israelita do Brasil (Conib) e a ADL.Pergunta – Quais são os principais tipo de discurso de ódio que circulam pelo Facebook e como vocês monitoram as postagens?
Jonathan Greenblatt – A Liga Anti-Difamação é a mais antiga organização de combate ao ódio no mundo. Hoje [segunda-feira, dia 17] faz 107 anos do linchamento de um homem judeu que catalisou o nascimento da Liga. Há gerações monitoramos ódio no mundo real e, mais recentemente, o ódio online. Discurso de ódio é um problema em toda a internet: em vídeos online, plataformas de videogames e blogs.
Mas é nas redes sociais em que ele é mais frequente e tem o maior alcance, porque as redes reconfiguraram a forma pela qual nós obtemos informações, como nos conectamos a outras pessoas, fazemos compras, tudo. E é no Facebook que o assédio e o ódio online ocorrem mais frequentemente. No início do ano, publicamos um levantamento sobre a experiência de internautas com ódio e assédio –dos usuários que relatam ter sofrido assédio, 77% afirmam que ocorreu no Facebook. Discurso de ódio, que inclui ataques e intimidação, normalmente contém racismo, antissemitismo, xenofobia e aparece de diversas maneiras, em palavras, memes e vídeos.
Por que decidiram convocar um boicote de anunciantes ao Facebook contra o discurso de ódio na plataforma?
JG – Começamos após os protestos desencadeados pela morte de George Floyd [homem negro asfixiado por um policial branco em Minneapolis, nos EUA, no final de maio], quando vimos supremacistas brancos se organizando abertamente pelo Facebook para interferir e prejudicar os atos antirracismo.
Achamos que o Facebook não agiu rápido o suficiente para derrubar esses conteúdos, e então resolvemos agir. Nunca foi um boicote. Boicote implica romper relações de forma permanente ou por muito tempo. Foi uma pausa, pedimos que empresas deixassem de anunciar por um mês na plataforma. Sabemos que o Facebook tem bilhões de clientes, que não conseguiríamos afetar de forma significativa seu faturamento. A ideia era chamar a atenção para as práticas deles. E, neste sentido, tivemos sucesso, porque a ação expôs a insanidade, e muitas pessoas se juntaram a nós, pois concordam que o Facebook precisa mudar.
A maior parte da receita do Facebook vem de milhões de pequenos anunciantes. Qual é o real efeito da iniciativa, então?
JG – O objetivo era se posicionar: anunciantes não querem que seus dólares subsidiem estereótipos, não querem sua verba de marketing financiando discurso de ódio. Havia anúncios de grandes empresas, como a Salesforce, a Verizon, em páginas com conteúdo grotesco, antissemita e racista, além de teorias da conspiração. A Verizon não gasta milhões em anúncios no Facebook para financiar discurso de ódio. Mais de 1.200 empresas aderiram, entre as quais algumas das principais marcas americanas: Disney, Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks, Ford, Levi’s, Hersheys. Mas também marcas globais, porque esse é um problema global, não apenas americano: Volkswagen, Honda, SAP, Diageo, Unilever. Todas essas companhias não querem que seu dinheiro financie conteúdo que demoniza pessoas por causa da origem delas, da maneira como rezam ou devido às pessoas que amam.
No Brasil e, acredito, também nos EUA, anúncios distribuídos por meio da ferramenta Google Ads acabam financiando sites que promovem teorias da conspiração, jogos de azar etc. Apesar de o Google reiterar que tem filtros para evitar a prática, vemos até mesmo anúncios do governo em sites extremistas e de desinformação. Há alguma ação pensada para o Google Ads?
JG – Nós começamos focando o Facebook e suas práticas, mas não é limitado ao Facebook. O objetivo foi tomar uma atitude a respeito do ódio online. Facebook não é o único que distribui insultos, calúnias e ataca bodes expiatórios de uma maneira que não acontece nas redes de TV, na mídia impressa, no rádio. A plataforma simplesmente não tem padrões e regras. Mas o Facebook não é o único. O Google precisa melhorar, o Twitter precisa melhorar, o Reddit, o TikTok. Divulgamos um relatório na semana passada sobre ódio no TikTok.
Já acabou o mês de pausa nos anúncios. Quais são os próximos passos?
JG – Temos mais ações planejadas. Você vai ver que faremos outras ações nos próximos meses.
O senhor pode adiantar alguma coisa?
JG – Não, ainda não. Só posso garantir que aquela não foi uma ação isolada.Segundo relatos na mídia, o dono do Facebook, Mark Zuckerberg, ao ser questionado por seus funcionários sobre o boicote dos anunciantes, teria dito: “Tudo bem, os anunciantes vão voltar em breve”.
Como o senhor enxerga esse tipo de reação? O senhor acha que o Facebook e outras plataformas entendem a importância de combater o discurso de ódio?
JG – As plataformas não levam isso a sério como deveriam. Nós queremos que elas apliquem parte de sua energia e de suas inovações para lidar com linguagem de ódio em suas plataformas, da mesma maneira que dedicaram energia para criar sistemas de pagamentos, plataformas de vídeo e outros. Essa não é uma preocupação apenas da sociedade civil, é um desejo dos acionistas e uma exigência dos anunciantes. É uma necessidade, porque agora órgãos de regulamentação estão determinando isso.
Houve uma audiência no Congresso americano há algumas semanas, e Zuckerberg foi questionado quatro vezes a respeito do “Stop Hate for Profit”. Queremos enfatizar que essa não é uma questão trivial. O Facebook já disse em público que está muito satisfeito porque, com ajuda de inteligência artificial, consegue bloquear 80% dos conteúdos com discurso de ódio antes que sejam postados na plataforma. Isso não é suficiente. A Ford não diz “89% dos nossos cintos de segurança funcionam, então está tudo bem” nem a Levi’s diz “eu sei que 89% das nossas calças jeans não foram feitas com trabalho escravo, então tudo bem”. Qualquer empresa diria “vou investigar minha produção para resolver isso”, “vou tirar os carros do mercado, enquanto tentamos resolver”. Só queremos que o Facebook adote a mesma disciplina, foco e padrões morais que essas outras empresas adotam. Não é pedir muito. Qualquer outra organização de mídia ou publisher, quando comete um erro, corrige e é transparente.
O senhor acredita que a pressão da sociedade civil e boicotes de anunciantes serão suficientes para mudar o comportamento do Facebook e outras plataformas, ou é necessário ter mais regulação?
JG – Eu adoraria pensar que essa questão pode ser resolvida sem regulação do governo, mas tenho dúvidas. Como Zuckerberg disse, todos os anunciantes vão voltar. Essa sua frase demonstra sua indiferença monopolista. Todo mundo precisa da empresa, eles não podem abrir mão da gente, então por que vamos mudar? Você pode ignorar entidades de defesa das crianças, organizações da sociedade civil como a ADL, e até desconsiderar seus clientes, mas você não pode ignorar regulação do governo. Seja nos EUA, na Europa, no Brasil ou em qualquer outro lugar, então isso talvez seja necessário, infelizmente.
Quando o senhor fala em regulação, refere-se especificamente a medidas antitruste, de quebra dos monopólios, ou a outros tipos de regulação?
JG – Há várias formas para lidar com essa questão, antitruste e outras. Por exemplo, a legislação americana chamada Secção 230 (seção 230 da Lei da Decência nas Comunicações) exime as plataformas de internet de qualquer responsabilidade (por postagens de terceiros). Se um jornal, um canal de TV, uma rádio, ou empresa de outdoors publicar algo que está errado, que ofende ou prejudica certas pessoas, ele é responsável por isso, pode responder legalmente. Isso encoraja certos comportamentos. Isso não se aplica a plataformas que veiculam conteúdo criado por usuários. O governo poderia tanto adotar medidas antitruste, como rever a seção 230.
Comentaristas de direita e conservadores afirmam que estão sendo perseguidos pelas plataformas de internet e que têm sua liberdade de expressão violada. Como o senhor vê isso?
JG – Não concordo. Todos os dias, a grande maioria dos trending topics no Twitter são tópicos veiculados na mídia conservadora. A questão não é se o Facebook discrimina vozes conservadoras ou vozes progressistas. A questão é: como o Facebook lida com linguagem de ódio. Não tem nada a ver com o voto das pessoas, e sim com os valores. Insultar pessoas com base em sua raça ou religião é inaceitável para todos, em qualquer ponto do espectro ideológico.
Quais são os limites para liberdade de expressão?
JG – Facebook, Twitter e outras plataformas de redes sociais são empresas privadas, e os usuários estão sujeitos às regras de uso de cada uma. Não é necessariamente uma questão regida pela Primeira Emenda (da Constituição americana, que garante a liberdade de expressão). Tendo dito isso, a ADL defende fervorosamente a liberdade de expressão nos EUA. Nós reconhecemos que a Primeira Emenda protege até discurso odioso ou ofensivo, e acreditamos que a melhor resposta ao discurso de ódio não é a censura, é mais discurso. O desafio que enfrentamos hoje é que as pessoas estão usando seus direitos à livre expressão tanto no mundo real quanto virtual para disseminar ódio, e a civilidade e o respeito estão sob ataque. Vemos essa tendência em universidades, no mundo cibernético, e em outras áreas. Por isso, uma das prioridades da ADL é promover o contradiscurso, a verdade e o diálogo respeitoso, sem minar o direito à livre expressão.
Como o discurso de ódio online transborda para as ruas e afeta o mundo real?
JG – Nós já vimos inúmeras vezes o discurso de ódio online se transformar em violência no mundo real. Quando a retórica de ódio e violência é normalizada e pode prosperar online, sem ser incomodada, é só uma questão de tempo até que algumas pessoas coloquem essas ideias em prática. Isso aconteceu em vários assassinatos em massa recentes, como o atirador de Christchurch, o de El Paso e os supremacistas brancos que entraram atirando em uma sinagoga em Pittsburgh. Essas pessoas, e muitas outras que cometeram crimes violentos, deixaram um rastro de declarações perturbadoras online, em diferentes redes sociais. Está mais do que claro que a internet, em especial as redes sociais, tem um papel crucial na radicalização de pessoas, na transformação dessas pessoas em extremistas.