Vítima da tragédia diz a juiz que tem ‘na pele’ o que aconteceu

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    FERNANDA CANOFRE DA FOLHAPRESS:

    Em um intervalo durante o depoimento de Maike Adriel dos Santos, 29, neste sábado (4) –o quarto dia do julgamento das responsabilidades pelas mortes ocorridas na boate Kiss, em 2013–, Kelen Ferreira, 28, outra sobrevivente, que falou no primeiro dia, na última quarta-feira (1º), se aproximou da área reservada.

    Os dois se conheceram depois da tragédia em Santa Maria (RS). Ela disse que queria apenas expressar solidariedade a ele; o jovem perguntou então se ela estava bem.

    Respondendo ao juiz Orlando Faccini Neto sobre como se sentiu antes de depor, Maike afirmou que era a primeira vez que lhe davam voz ativa, que podia falar algo e contar o que havia acontecido em 27 de janeiro de 2013.

    “Ou contavam para a gente ou nos culpavam das situações. Botaram a culpa nos pais, a sociedade como um todo, botaram a culpa nos sobreviventes, nas vítimas. Creio que é o momento de a gente falar e ter a oportunidade de explicar como foi. Eu estava lá e tenho na pele como foram as coisas”, disse ele ao magistrado.

    O júri pelas 242 mortes e 636 vítimas sobreviventes do incêndio ocorre em Porto Alegre, depois que algumas defesas dos réus pediram o desaforamento, questionando se Santa Maria (RS), cidade onde aconteceu a tragédia, poderia garantir um júri imparcial. O julgamento deve durar até 15 dias, segundo a previsão.

     

    Quatro réus são acusados por homicídio e tentativa de homicídio simples com dolo eventual contra as pessoas que estavam na boate naquela madrugada –os sócios da Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffman, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente de palco, que teria comprado o artefato pirotécnico usado na apresentação).

    Em outro momento, Maike disse que conhecer as famílias depois da tragédia foi como um tratamento psicológico para ele.

     

    “Foram os pais pelos pais, os pais pelos sobreviventes, a gente se acolheu, algo que não vimos exteriormente”, disse ele à Folha após o depoimento. “[A relação com eles] foi uma extensão da amizade das gurias que eu perdi”.

    No julgamento, a promotora Lúcia Helena Callegari mostrou a ele fotos da festa na Kiss, para a qual ele foi com amigos para comemorar o aniversário de Andrielle Righi da Silva. Todas as cinco meninas que apareciam em uma delas morreram na tragédia.

    Em outra, com seis pessoas, ele afirmou que apenas ele e outra amiga, que saiu da boate antes do incêndio, estavam vivos.

    A promotora foi até o espaço reservado ao público, no salão do júri, em outro momento, para abraçar a mãe de Andrielle, que acompanhava o depoimento.

    Hoje formado em desenho industrial pela UFSM (Universidade Federal da Santa Maria), Maike contou não ter sequelas respiratórias, mas, sim, resquícios de trauma, embora menores com o passar do tempo, como crises de ansiedade e medo de aglomeração –ele ficou internado cerca de um mês, com uma semana em coma.

    O trabalho de conclusão de curso dele analisou se as placas de sinalização e o projeto da boate colaboraram para o resultado final da tragédia e que alternativas poderiam ter mudado isso.

    “Em nove anos, a gente nunca teve uma resposta, um pedido de desculpas. Poderia ter gasto gasolina dele de Porto Alegre a Santa Maria, se desculpando com os pais. Parecia que foi ele que teve as queimaduras de terceiro grau, quase perdeu os movimentos dos dedos, não conseguiu desenhar e concluir a faculdade”, disse ele, criticando um documentário feito por Elissandro Spohr e lançado pouco antes do julgamento.

    Laís Lemos Karsburg, 23, que perdeu o irmão Leonardo Lemos Karsburg, 20, na tragédia, se emocionou durante o depoimento de Maike. Ela acompanha presencialmente o júri, representando a família, já que os pais e a irmã vivem fora de Porto Alegre, e também critica o que chama de vitimização dos réus.

    “Eles estão tentando inverter os papéis. A gente já recebeu a nossa condenação, nada do que acontecer aqui vai trazer meu irmão de volta, ou os filhos desses pais, ninguém. Temos plena consciência disso, só não queremos condenar outras famílias a passarem pelo que passamos nos últimos nove anos e que vamos passar a vida inteira”, afirmou ela.

    Além de Maike, Cristina dos Santos Clavé, outra vítima, que perdeu 15 amigos na tragédia, falou neste sábado sobre o que viu na boate naquele dia. Ela afirmou que não ouviu ninguém avisando que se tratava de um incêndio e que escutou pessoas reclamando que estavam sendo barradas para sair.

    “Eu tenho certeza de que muita gente morreu sem saber o que estava acontecendo”, afirmou.

    Quase nove anos depois, ela disse que segue tomando seis remédios para tratar questões respiratórias e de saúde mental, um gasto mensal em torno de R$ 700.

    “Por muito tempo eu comprei do meu bolso, aí a associação [AVTSM, Associação das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria] conseguiu acordo com uma rede de farmácias”, contou ela, que desde então recebe os medicamentos como doação.

    Uma testemunha da defesa de Spohr, Alexandre Marques, 38, também falou neste sábado. Ele trabalhava com a promoção de bandas e festas, na época do incêndio, e chegou a colaborar com a Kiss. Marques também fazia apresentações com artefatos pirotécnicos.

    “O que levou à fatalidade desse dia fatídico não foi a espuma, foram erros que vieram antes, que levaram a isso. Mas o maior foi acender [o artefato] e erguer para cima”, afirmou ele ao ser inquirido pelo Ministério Público.

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